Observação Participante



Segundo Ato de 2014 da juventude em São Paulo, a reação do governo tucano paulista contra os "Black Blocks" e os movimentos populares
Escrito por Ricardo Shiota  (doutorando em sociologia pelo IFCH/Unicamp)

A polícia militar do Estado de São Paulo adotou uma nova tática de repressão, colocada em prática no ato do dia 22/02, sob o álibi de conter os “Black Blocks”. É a reação do governo tucano aos protestos organizados pela juventude, pelos movimentos sociais populares e pelos partidos políticos de esquerda contra o poder oligárquico-burguês e a FIFA. A nova tática usada pela polícia consiste no isolamento, durante os protestos de pessoas que ela supõe fazer parte do grupo político que se veste de preto e é o mais difamado e criticado, atualmente, graças a ação dos meios de intoxicação da opinião pública. 

  
Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

A nova tática da polícia (criação de um pelotão de MMA) foi transplantada de outros países, é usada nos EUA. Teoricamente, a ideia é isolar os manifestantes “infratores” dos manifestantes “legítimos”, usando um pelotão treinado nas artes marciais. A visão legalista das classes dominantes acerca das manifestações populares e da juventude, papagaiada pelos meios de intoxicação da opinião pública, é uma forma de conter os conflitos sociais e a luta de classes por decreto. Porém, é preciso lembrar que as classes dominantes (estamentos senhoriais, oligarquias, burguesia)  sempre desconsideram as leis ou criam novas para fazer valer seus interesses privados na sociedade brasileira.  

  


Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

A condenação consensual da opinião pública aos “Black Blocks” deve ser objeto de reflexão e questionamento. Os atos de violação da propriedade de empresas privadas filiais vinculadas ao grande capital estrangeiro, danificação de agências bancárias, de bancos, cujos lucros são bilionários, é motivo de escândalo na sociedade brasileira.  O legislativo (Senado e Câmara) pleiteia uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra os "Black Blocks". É bom lembrar que o legislativo, assim como o judiciário, é um reduto histórico do conservadorismo (visão de mundo contrária às mudanças sócio-econômicas estruturais, aos valor da igualdade, ao papel social da propriedade) e do tradicionalismo (visão de mundo contrária à mudança de valores da religião cristã por motivos irracionais) nacionais. 


Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Por que a violação de bancos, de concessionárias de empresas automobilísticas imperialistas e de símbolos do capitalismo afeta o âmago das pessoas, desencadeando uma reação hostil de desaprovação sem qualquer reflexão sobre o problema? É antiético se rebelar e quebrar fisicamente o espaço das grandes instituições financeiras, símbolos do capitalismo? Estaríamos diante de fenômeno análogo ao dos ludistas que, na Inglaterra do século XIX, quebravam as máquinas em protesto ao avanço da grande indústria; práticas geralmente vinculadas ao movimento operário anarco-primitivista.


 
Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

A tática “Black Block” ganhou adeptos na juventude brasileira e adquiriu destaque na grande imprensa a partir das manifestações de julho de 2013. Pelo que soube em conversas e leituras, por se tratar de uma tática de manifestação, não há uma organização política vertical. Simplesmente, os jovens se reúnem nas manifestações, se vestem de preto, escondem os rostos e promovem a quebradeira de bancos, empresas transnacionais e até de empresas privadas de transporte público. 




Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Entre os manifestantes, vi muitos jovens, com bastante capacidade questionadora e vontade de agir. Estão todos muito insatisfeitos. Ressentem de uma formação teórica, mas estão dispostos a agir em nome de imagens de emancipação, utopias difusas, desejos profundos de melhoria de vida individual e coletiva.


Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014


A condenação unânime na grande imprensa não gera surpresas, afinal, existe uma autocracia da comunicação social no Brasil, pois a concessão delas está relacionada às artimanhas e às melhores tradições políticas nacionais (clientelismo, coronelismo, patrimonialismo) e se encontra nas mãos de meia dúzia de parentelas distintas e de igrejas. A direita é unânime também contra os “Black Blocks”. Na esquerda, o PSTU logo se posicionou contra eles. Minha questão é mais entender esse fenômeno.



Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014


Com efeito, os “Black Blocks” são uma novidade nas lutas populares urbanas da juventude nas grandes capitais dos Estados brasileiros. Em contrapartida, as classes dominantes reagiram, fazendo campanhas morais nos meios de comunicação de massa contra a quebradeira, exigindo e criando novas leis de repressão aos protestos populares. A grande imprensa do patronato divulgou associações capciosas, enganosas como se os “Black Blocks” quebrassem tudo de forma indiscriminada, como se fossem vândalos, desamparados de reivindicações, destituídos de ideologias e finalidades políticas. No enfoque dos meios, destacado pela grande mídia, tratar-se-iam de "rebeldes sem causa",  agentes do esvaziamento de manifestantes "legítimos" e "cidadãos" das ruas durante as manifestações.



Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Na atual conjuntura, o governo do PT preside aquela dupla articulação de que nos fala Florestan Fernandes (1), entre classes dominantes locais (oligarquias e burguesia que se articulam internamente de modo autocrático para conter os "debaixo" e permitir a acumulação capitalista) e  entre elas e o imperialismo (que extrai a partir de dentro do espaço econômico nacional a maior parte do mais valor, riqueza produzida, porque participa da acumulação através do fornecimento de capital estrangeiro e de tecnologia). O governo petista  optou por oferecer às forças armadas um poder que não apetece a elas como instituição, o de salvaguardar a ordem interna em qualquer situação de crise social e política. Ora, os militares devem exercer seus direitos políticos enquanto indivíduos e não como instituição, mas isso nunca houve no Brasil, desde a primeira Constituição republicana de 1891.

 
Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014


A razão desta nova ingestão das forças armadas é a manutenção dos investimentos externos e o aumento da dependência tecnológica e econômica externa, é o aprofundamento da internacionalização da economia brasileira; sinal disso é que a lei foi aprovada às vésperas do Forum de Davos. Tudo está ocorrendo em um contexto onde será aprovada a lei antiterror no país, às vésperas da Copa da Fifa.




Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

No Estado de São Paulo, há 20 anos subjugado pelo governo privatista, elitista e racista do PSDB, a reação não demorou a surgir perante o novo fenômeno de massa. A polícia adotou uma nova tática, desde novembro de 2013, a qual foi implementada ontem. Trata-se da criação de um novo pelotão especializado no uso de artes marciais para conter manifestantes. 




Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

 Conforme informações do Coronel Benedito Roberto Meira ao jornal Estadão (2), a corporação selecionou nos 31 batalhões existentes na capital policiais altos, fortes e com formação em artes marciais (jiu-jítsu, caratê, judô e capoeira). Idealmente, a nova técnica de “sair na mão” de corpo a corpo com os manifestantes dispensaria o uso de bombas. Porém, o novo pelotão tem na retaguarda a tropa convencional sempre munida de bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha.

Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Na manifestação de ontem, em que foi posto à prova, o novo método foi um sucesso do ponto de vista da repressão ao protesto. A polícia tentou acabar com a manifestação encurralando manifestantes para investigá-los. Dois cordões paralelos formados por policiais enquadravam os manifestantes durante o percurso nas ruas de São Paulo. 

 
Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014
   
Assim que anoiteceu, por volta das sete horas, a polícia isolou com uso da força os “Blacks Blocks e outros jovens que estavam próximos a eles. A manifestação ficou como que acéfala. É que os jovens vestidos de preto estavam na dianteira e logo atrás deles vinha uma corrente de jovens do PSOL denominada “Domínio Público”. Todos foram cercados e encurralados pela polícia para serem investigados um a um. Naquele momento a manifestação se dispersou e, depois, houve a formação de um grupo menor de manifestantes. 



Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Em conversa com as pessoas que foram “pegas”, durante a ação policial, descobri detalhes interessantes que revelam um pouco da sociedade brasileira. 



Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Depois de serem encurralados e mobilizados, os jovens com ligação com autoridades
foram soltos. Uma garota me disse que foi libertada porque acalmou outra que tinha contatos com um major da polícia e chorava. Em um telefonema para o pai, ela foi liberada junto com outras poucas pessoas que estavam com ela ali naquele momento.
Mais tarde foram liberados as pessoas do PSOL, que estavam com camiseta caracterizada e não tinham passagens policiais. Mas nem todos do PSOL que estavam lá foram liberados imediatamente. Outros foram levados para sete delegacias e permaneceram lá por horas. Eram jovens negros, mulatos, que apesar de estarem com a camiseta do partido e não terem ficha suja só foram liberados depois das onze. Tiveram de passar por todo tipo de humilhação, vexação e aviltamento, que fazem parte do ofício e está presente no treinamento da polícia militar.

Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014


























Existe uma cultura asquerosa nas polícias militares manifesta nos soldados, cabos e sargentos (no baixo escalão da corporação). Em relação ao patronato e aos comerciantes, ela se traduz como troca de favores. Aqueles oferecem refeições, em contrapartida, exigem proteção de seus estabelecimentos contra assaltos. Contudo, em relação aos "iguais"  (do ponto de vista de classe social), a relação é diferente. Impõe-se a cultura do medo, da autoridade, ou do autoritarismo do pequeno poder; a cultura da obediência cega aos fins burgueses que presidem à instituição. Evidentemente, esta cultura está relacionada às práticas desta instituição nas periferias, nas reintegrações de posse,  na contenção de rebeliões em presídios e Fundações Casas, nas perseguições a tiros de jovens que roubam 200 reais em postos de gasolina, nas perseguições a "traficantes" com 20 gramas a meio quilo de drogas. São práticas antipopulares, modos distintos de criminalizar, violentar e punir  pobres, negros, moradores de periferias. Tudo para manter a ordem oligárquico-burguesa interna, que se especializou em exportar riqueza aos Estados e empresas imperialistas.


Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

Conforme minha observação participante, das pessoas que foram pegas pela polícia através do cordão de isolamento somente as mais “frágeis socialmente” ou sem grande capital social foram autuadas. Depois de cercados, os jovens ficaram sob chuva e quartelada, tendo de obedecer ordens e ouvir conselhos morais da “tropa ninja” da polícia militar.  Os jovens ficaram por duas horas mobilizados e alguns foram sendo soltos aos poucos, conforme a investigação dos registros de antecedentes criminais. A maioria, porém, foi levada às delegacias policiais para a realização de uma triagem e abertura de inquéritos policiais, sendo que alguns foram autuados em flagrante. 


Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

A polícia fez um Boletim de Ocorrência coletivo acusando os que caíram em seu crivo por desacato, resistência, desobediência e lesão corporal. Parece que somente aqueles indivíduos mais frágeis socialmente tiveram de assinar o BO. Nas próximas manifestações, eles serão convocados para deporem na DIG. Falei com uma dessas pessoas. Tratava-se de uma jovem, de uns 18 anos, pobre ou dos estratos baixos da classe trabalhadora, magrinha, vestida com roupas de punk. Ela estava muito assustada e parece que o objetivo da polícia era exatamente assustar. Apavorar os jovens que vão de preto às manifestações para que fiquem longe delas, pois foram ameaçados de enfrentar a pena privativa da liberdade se desobedecerem o conselho "amigo" do policial.



Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014



Desse modo, existe uma lógica societária que rege as relações de poder na sociedade brasileira. É a velha lógica estamental dos Barões, Viscondes, Condes, Marquêses e Duques, que se atualiza. Aqueles que dispõem de uma boa parentela ou de uma boa relação podem atravessar fronteiras sem ser penalizados, enquanto que os indivíduos mais frágeis socialmente (sem nenhum tipo de capital) caem nas redes de poder e de repressão do Estado. 


Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014



No Brasil, quando a polícia mata pobres nas periferias existe o argumento de que são jovens com antecedentes criminais para livrar a má consciência burguesa. O mesmo é feito nas manifestações. Será que somente as pessoas com bons antecedentes criminais podem se manifestar nesta visão idílica e asséptica dos conflitos sociais e da luta de classes? Quais são os crimes mais lesivos ao conjunto da sociedade: os de colarinho branco ou aqueles de colarinho escuro e com cheiro de ralé?



 Fotografia de Evelson de Freitas - 22/02/2014

 A adoção de novos métodos repressivos responde à dinâmica criativa dos movimentos sociais com suas formas de questionamento da ordem social. É uma dialética (causalidade recíproca) entre ação e reação, questionamento e consenso, quebradeira e repressão. Mas, pelas leis do "Estado de direito" há um limite para a repressão. Tanto assim que a polícia, não pode simplesmente matar os manifestantes. Prefere se especializar com um batalhão de "ninjas", treinados em artes marciais para finalizar os manifestantes. Apesar disso, a polícia não poderia prender as pessoas porque estão nas manifestações de preto. Grandes covardes lutadores da burguesia. Quando lutam em torneios como o UFC, torço pela derrota deles. Lutadores antipopulares de artes marciais pertencentes ao canil da burguesia não me representam.    

 Fotografia de Evelson de Freitas - 22/02/2014

Historicamente, o limite estabelecido pelas leis durante as conjunturas de crise social e política sempre acaba sendo bastante tênue e tanto as classes dominantes quanto o proletariado burlam as leis para aumentar ou reduzir os limites emancipatórios delas. Por exemplo, nas vésperas do Golpe de 1964, quando as classes dominantes o arquitetavam,  os trabalhadores respondiam com greves, proibidas por lei. 




  Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

 De um lado, portanto, a ação política dos “Blacks Blocks” é legitima no âmbito dos conflitos sociais e da luta de classes. Afinal, a burguesia sempre desrespeita ou cria novas leis para impor seus interesses de classe. Além disso, sabemos que o fetichismo da mercadoria inverte a relação entre homens e coisas, fazendo destas seres humanos. Ao concordamos com as opiniões das classes dominantes veiculadas pelos meios de intoxicação da opinião pública, pode ser que acabamos humanizando as agências bancárias do Itaú, do Santander e do Bradesco quando são violadas e reiteramos a coisificação, a desumanização dos manifestantes e a desconsideração de sues fins.


  Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014



De outro lado,  porém, não seria uma forma de ação ludista a dos “Black Blocks”? Será que, em vez de atacar o espaço dos bancos, empresas e símbolos do capitalismo não seria mais viável construir novos espaços, novas relações de intercâmbio de ideias e necessidades, encontrar formas para mudar as relações sociais de produção e reprodução da ordem? Será que o problema do Brasil é a Copa da Fifa ou este não é mais um evento que reproduz a estrutura de poder existente no país, a qual a juventude vem questionando? 


  Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

A juventude surge como um novo ator político na rígida estrutura oligárquico-burguesa de poder brasileira.

  Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014


 Os jovens se singularizam como "marginais", enquanto questionadores da sociedade, e portadores da mudança social, segundo a definição do termo dada por  Roger Bastide (3). Marginal não no sentido psicológico-culturalista de pertencimento a dois mundos e a nenhum ao mesmo tempo. Para Bastide é a sociedade que engendra a marginalidade e os indivíduos mais aptos a compreenderem as mudanças são os menos enraizados na sociedade. São aqueles à margem das estruturas econômicas e de poder, mas que querem participar delas ou foram educados para isso.

   Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014

São os jovens brasileiros os marginais de hoje, porque apesar de estarem tendo oportunidades educacionais que seus pais não tiveram, eles continuam não participando das estruturas de poder, tampouco se inserindo nomercado de trabalho com dignidade, conforme as promessas de emprego advindas do ataque ao Estado brasileiro nas gestões dos últimos governos neoliberais (Collor, FHC, Lula, Dilma).


   Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014
  
O que os jovens precisam ter clareza é que consciência social, unidade e organização são as matérias primas para a construção de uma vontade política; a qual deve se pautar por objetivos realizáveis, concretos sem abandonar os objetivos mais nobres da utopia, da emancipação através da tomada, manutenção do poder. É preciso também reconhecer os limites do político, dos elementos que lhe são adversos como a cultura e a religião. Marcel Mauss estudou a Revolução Russa com a esperança de que ela suplantaria o parentesco burguês, mas isso não ocorreu e tampouco os islamitas chechenos abandonaram suas crenças, apesar de toda repressão stalinista.




   Fotografia de Ricarda Canozo 22/02/2014
Devemos desconfiar do que acreditamos ser a emancipação, porquanto a visão dela está presa às tendências do real, à civilização ocidental, cristã e capitalista. A razão ocidental não é a única forma de racionalidade e tampouco nosso estilo de vida é o único válido. Das lutas do século XX, sobrou a certeza de que apesar de conflitantes, os valores/fins de igualdade econômica e política devem caminhar junto com os valores/fins de diferença cultural e humana. Com  Roger Batide penso que "a libertação do homem dominado e explorado só deveria servir à maior expansão de sua liberdade criadora ou melhor, de suas possibilidades culturais".                                                          

    Referências

(1)    Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 2007. 
(2) 
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,megaoperacao-da-pm-usa-pelotao-ninja-isola-black-blocs-e-prende-230,1133414,0.htm
(3)  Roger Bastide. Antropologia aplicada. São Paulo: Perspectiva, 1987.



 
 

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